Este é um excerto do primeiro capítulo do livro: A tarde do cristianismo de Tomáš Halík
“Para que a Igreja seja realmente uma Igreja e não uma seita fechada, ela tem de empreender uma mudança radical na maneira como se vê, na sua compreensão do seu serviço a Deus e às pessoas neste mundo. Precisa de reinventar e desenvolver mais plenamente a sua catolicidade e a universalidade da sua missão, esforçar-se para ser verdadeiramente «tudo para todos». Repito: chegou a hora da autotranscendência do cristianismo.
Se a Igreja quer ir para além dos seus limites e servir a todos, então este ministério deve estar vinculado ao respeito pela alteridade e liberdade daqueles a quem se dirige. Deve libertar-se da intenção de comprimir todos nas suas fileiras e ganhar domínio sobre eles, para «colonizá-los». Deve confiar no poder de Deus, levando a sério o facto de o Espírito operar bem para lá dos limites visíveis da Igreja.
Até agora, a Igreja concentrou-se principalmente no cuidado pastoral dos seus fiéis e em missões destinadas a expandir as suas fileiras. Mas sob elas pulsa uma outra dimensão, desde os primórdios do Cristianismo: a diaconia, a caridade. É principalmente neste campo que os cristãos aprenderam a servir todas as pessoas na dor e na necessidade, cumprindo assim o apelo de Jesus ao amor universal e à misericórdia sem fronteiras ou intenções proselitistas. É aqui que os cristãos deram e continuam a dar testemunho através de atos sem palavras – através da solidariedade do amor e demonstrando um envolvimento próximo. Fiéis ao espírito do relato de Jesus acerca do Bom Samaritano, eles não perguntam «quem é o meu próximo?» (ou quem não é o meu próximo) como lhe perguntou o fariseu que «queria justificar-se», desejando justificar os limites estreitos da sua vontade de amar e ajudar. Eles sabem que devem «fazer-se próximos» – estar perto dos outros, especialmente dos necessitados. Esta proximidade terapêutica e solidariedade assumiu e continua a assumir muitas formas, e adquire também uma dimensão política.
Como já foi referido, a Igreja enquanto hospital deve cuidar também da saúde da sociedade, da prevenção e diagnóstico das doenças que atingem sociedades inteiras, bem como da terapia e reabilitação posteriores; deve lutar para superar os «pecados sociais» e as estruturas desviantes dentro dos sistemas sociais. Durante décadas, a doutrina social da Igreja apontou que o pecado não é apenas uma questão de indivíduos; estamos todos cada vez mais enredados numa rede intricada de relações económicas e políticas onde o mal muitas vezes assume uma aparência suprapessoal e anónima.
(…) Durante os meus quarenta e três anos de ministério sacerdotal, ouvi dezenas de milhares de confissões. Por muitos anos, para além do sacramento da penitência, propus também conversas espirituais mais longas e bem mais profundas do que aquilo que a forma ordinária do sacramento permite, e que se enquadram num contexto mais amplo da vida espiritual. Nessas conversas participam por vezes não batizados e também muitas outras pessoas que poderiam ser descritas como não religiosas, embora espiritualmente fundamentadas ou em busca. Ampliei a minha equipa de colaboradores para este ministério de modo a incluir leigos formados em Teologia e Psicoterapia. Estou absolutamente convicto de que o ministério do acompanhamento espiritual individual será o crucial papel pastoral da Igreja na tarde do Cristianismo que se avizinha, e o mais necessário.
Simultaneamente, é aquele ministério em que mais aprendi, em que a minha teologia e espiritualidade, bem como a minha compreensão da fé e da Igreja, sofreram uma certa transformação. Quando o meu bispo, o cardeal Dominik Duka, recusou terminantemente encontrar-se com as vítimas de abuso sexual por parte de padres (incluindo membros do mosteiro do qual ele, à época, era superior) e as encaminhou para a polícia, tive longas conversas noite dentro com muitas dessas vítimas, após as quais muitas vezes não conseguia dormir. Não fiquei a saber muito mais do que aquilo que já viera a lume, mas tive a oportunidade de olhar essas pessoas nos olhos e segurar as suas mãos enquanto choravam. E, garanto-vos, foi uma experiência muito diferente de uma simples leitura dos relatórios das declarações prestadas à polícia ou ao tribunal. (…)
Vários dos meus colegas universitários, a quem respeito pessoalmente e de cuja piedade e boa vontade não duvido, dirigiram ao Papa Francisco um documento farisaico intitulado A Correção Filial, repreendendo-o por ele, na sua exortação apostólica Amoris Laetitia, ter convidado a um acolhimento pastoral misericordioso, individual e criterioso de todas as pessoas em situações ditas irregulares, como homossexuais e pessoas divorciadas que se casaram novamente numa cerimónia civil. Não me surpreendeu que estes severos julgamentos tivessem sido proferidos por pessoas que jamais se sentaram num confessionário nem ouviram as histórias dessas pessoas. Se eu visse o mundo pelas lentes dos livros de moral neotomistas, em que os argumentos individuais encaixam de forma suave e lógica como uma máquina fria, mas ignorando completamente as realidades complexas da vida, talvez eu abordasse os problemas das pessoas com juízos igualmente simples, a preto-e-branco e sem caridade. Provavelmente ofender-me-ia também com um Papa que nos recorda que a Eucaristia não é uma recompensa para católicos exemplares, mas um panis viatorum, pão para o caminho do amadurecimento – alimento e remédio para os fracos e falhos.
Perdi a conta às histórias de mulheres que, irresponsavelmente abandonadas pelos seus maridos, e que tendo encontrado anos mais tarde apoio para si e para os seus filhos num novo e bem-sucedido casamento, foram, sob a lei atual da igreja, banidas para sempre da mesa de Cristo, daquela mesma mesa para a qual Jesus, para indignação dos fariseus, convidava pessoas em «situações irreligiosas» sem lhes impor quaisquer árduos entraves de antemão. Acerca dessas mesmas pessoas disse Ele que seriam justamente elas, porque conseguiam apreciar o dom gratuito do perdão e da incondicional aceitação, que precederiam os seus orgulhosos acusadores e juízes no reino dos céus. Jesus sabia que somente a experiência da aceitação e do perdão incondicional poderiam trazer uma verdadeira transformação de vida, uma conversão. Poucas coisas eram tão estranhas a Jesus quanto o pensamento legalista dos seus maiores oponentes entre os fariseus. Aqueles que invocam as palavras de Jesus acerca da indissolubilidade do casamento devem perceber que Ele quis com essas palavras defender as esposas da imprudência de homens que poderiam facilmente repudiá-las por motivos mesquinhos, emitindo simplesmente um «certificado de divórcio», e que não pretendia certamente colocar fardos adicionais sobre as vítimas de tal comportamento, ou seja, as mulheres repudiadas.
Quando um sacerdote, numa inflamada homilia na catedral de Praga, alertou para uma ameaça de domínio global por homossexuais e teóricos de género que removeriam à força crianças das suas famílias e as venderiam como escravas, enviando católicos devotos para campos de extermínio, percebi que esse (des)evangelho do medo não é realmente a minha religião – e, acima de tudo, não é o euangelion (a boa nova), a religião de Jesus. Ouvi dezenas de relatos de cristãos que discerniram uma orientação homossexual que não escolheram e, depois de se assumirem, sofreram um linchamento psicológico às mãos do seu piedoso ambiente, que muitas vezes incluía os seus próprios pais e familiares. Alguns deles tentaram o suicídio, desesperados por serem rejeitados pela sua comunidade. Deverei eu forçar essas pessoas, quando finalmente encontrarem um parceiro para a vida, a comprometerem-se a renunciar para sempre ao seu desejo de intimidade ou, na melhor das hipóteses, rotular «generosamente» o seu amor como um «mal menor» do que a solidão ou a promiscuidade?
Durante muito tempo, os livros de moral católica turvaram os problemas individuais das pessoas, também para mim, e hoje envergonho-me disso. Quão grande é a tentação para nós, confessores, portadores da autoridade da Igreja, de nos tornarmos fariseus e escribas contra os quais Jesus advertiu com tanta insistência – aqueles que impõem pesados fardos às pessoas e não levantam um dedo para ajudá-las! É claro que é muito mais fácil e rápido julgar as pessoas arbitrariamente remetendo-as para os parágrafos do direito canónico do que fazer aquilo que o papa Francisco pede: perceber a singularidade de cada pessoa e ajudá-la – levando em conta precisamente a singularidade da sua situação de vida e do seu grau de maturidade pessoal – a encontrar uma solução responsável dentro das possibilidades reais de que dispõe.
Quando acontecerá por fim a mudança na nossa Igreja deste «catolicismo sem cristianismo» e desta justiça sem misericórdia para a «nova leitura do Evangelho» que o papa Francisco tanto exorta e ensina? (…)
Foi isto que experimentei nas conversas com vítimas de abuso sexual e psicológico na Igreja. A sua dor reprimida, a sua desilusão com a Igreja e os seus remorsos muitas vezes não reconhecidos contra Deus, que muitas vezes se transformavam num sentimento de culpa ou dificuldades psicossomáticas, precisavam de ser expressos. Exigia aquele espaço seguro de aceitação incondicional. É aí que a verdade é revelada – e é uma compreensão da verdade muito diferente daquela a que se referem os «donos da verdade». Sonho com uma Igreja que crie um semelhante espaço de segurança – um espaço de verdade que cura e liberta. (…)”